O Espaço de diálogo sobre o Ensino Médio Público

sexta-feira, 15 de março de 2013

ENSINO MÉDIO E TÉCNICO PROFISSIONAL: DISPUTA DE CONCEPÇÕES E PRECARIEDADE



Gaudêncio Frigotto[1]

Um dos contrastes que se reitera historicamente em nossa sociedade é a absurda concentração de renda e a propriedade na mão de uma minoria e, como consequência, uma grande massa de pobres ou miseráveis.
Como a escola e os processos formativos não são apêndices da sociedade, mas parte constituída e constituinte da mesma, a desigualdade social se reflete na desigualdade educacional. O estigma colonizador e escravocrata da classe dominante brasileira produziu uma burguesia que não completou, em termos clássicos, a revolução burguesa e, como tal, não é nacionalista, mas associada ao grande capital.

Trata-se de uma classe dominante que desde o império tem um discurso retórico que apresenta a educação como uma prioridade fundamental, uma espécie de galinha dos ovos de ouro para resolver todas as mazelas da sociedade. Almeida de Oliveira, em discurso no Parlamento em 18 de setembro de 1882, afirmava: na instrução pública está o segredo da multiplicação dos pães, e o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta[2].
Um discurso que hoje se materializa no slogan todos pela educação, mas que na realidade legitima propostas educacionais de interesse privado dos grupos industria, do agro negócio e dos serviços, especialmente bancos e grande imprensa privada.  Isto se efetiva pela adoção, por prefeituras e estados, de institutos privados para gerir os sistemas de ensino no conteúdo e no método e nos valores mercantis.
O passo mais ousado deste processo foi lançado no dia 31 de Janeiro de 2013 com o nome sugestivo de Conviva Educação, um sistema virtual gratuito”, desenvolvido por “investidores sociais” para apoiar a gestão das secretarias municipais de educação de todo o Brasil. Quem são estes protagonistas? Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM Fundação Itaú Social, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Victor Civita, Instituto Gerdau, Instituto Natura, Instituto Razão Social, Itaú BBA e o Movimento Todos Pela Educação. A barriga de aluguel para a gestão e da divulgação é União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), com o apoio do Conselho Nacional de Secretários da Educação (CONSED).
Mas desde o Império são exatamente os representantes laicos e religiosos desses grupos privados que no judiciário, no parlamento e na burocracia do Estado, sustentados pelo monopólio da grande imprensa, que barraram ou desfiguram as propostas que emanam do debate da sociedade e que buscam afirmar o sentido republicano do direito à educação básica, pública, gratuita, universal e laica. Há mais de dois anos o Plano Educação, amplamente negociado e debatido na sociedade, está sendo protelado e desfigurado por estas forças privadas
Dermeval Saviani, em videoconferência, explicita de forma sucinta a negação histórica ao efetivo direito de educação básica pública de qualidade com a equação: Filantropia + protelação + Fragmentação + improvisação =  precarização geral do ensino no país.
Para elucidar o resultado deste descaminho histórico nos fixamos no ensino médio e a formação técnica e profissional. Trata-se do duplo passaporte à cidadania efetiva, no plano político, social e econômico mediante o acesso qualificado ao mundo da produção.
Cidadania política significa ter os instrumentos de leitura da realidade social que permitam aos jovens e adultos reconhecerem os seus direitos básicos, sociais e subjetivos e a capacidade de organização para poder fruí-los. No plano da formação profissional, a cidadania supõe a não separação desta com a educação básica. Trata-se de superar a dualidade estrutural que separa a formação geral da específica, a formação técnica da política, lógica dominante no Brasil, da colônia aos dias atuais. Uma concepção que naturaliza a desigualdade social postulando uma formação geral para os filhos da classe dominante e de adestramento técnico profissional para os filhos da classe trabalhadora.
A retórica reiterada da importância da educação de todos pela educação o convida educação mostra-se cínica diante dos dados do Censo do INEP/MEC de 2011. O Brasil tem hoje 8. 357.675 de alunos matriculados no ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9%, no âmbito estadual, 1,1% municipal e 11,8% no ensino privado. Pode-se afirmar que no âmbito público apenas os 1,2% alunos em escolas federais e algumas experiências estaduais, como a Escola Liberato no Rio Grande o Sul, têm padrões de qualidade internacional, com professores de tempo integral, carreira digna, tempo de pesquisa e orientação, laboratórios, biblioteca, espaço para esporte e arte etc., cujo custo econômico médio é de 4 mil dólares, aproximadamente 8 mil reais.
Os 85% de jovens que estão nas escolas estaduais mais de um terço o fazem à noite, com professores trabalhando em três turnos e em escolas diferentes e com salários vexatórios. O custo médio é de aproximadamente mil dólares ano, um quarto do custo federal. Uma mensalidade numa escola privada de elite corresponde ao que a sociedade Brasileira está disposta gastar com a maioria absoluta dos jovens que estão no ensino médio ao longo de todo um ano.
Mas o alarmante é o que revela a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens brasileiros. São 18 milhões de jovens entre 15 e 24 anos estão fora da escola e 1.8 milhão, em idade de estar no ensino médio, não estão frequentando. Na faixa de entrar na universidade, 18 a 24 anos, 16,5 milhões de jovens, ou seja 69,1% não estudam. Pode-se concluir que o Brasil não tem de verdade ensino médio.
A metáfora do apagão educacional que aparece no vozerio de empresários e seus representantes intelectuais e políticos, para reclamar a falta de pessoal qualificado esconde quem produz: a mentalidade colonizadora e escravocrata da classe dominante que constituem. Como o quadro de ensino médio acima apresentado a formação profissional em nível superior ou pós médio só pode ser pífia.
Os dados do PNAD mostram que apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos entram no curso superior. É claro que vão faltar, especialmente em algumas áreas, de profissionais qualificados. Como nos últimos 50 anos avançamos de forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o ensino médio na idade adequada e a maioria só atinge o ensino fundamental, as políticas de formação profissional para grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, precarização e adestramento.
Isso fica evidenciado no seguinte dado histórico: em 1963, no curto governo João Goulart face à carência de trabalhadores qualificados a aquele ciclo de desenvolvimento criou-se o Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra (PPMO). Um programa transitório e de curta duração. Veio o golpe civil militar e este programa durou 19 anos.
O que é espantoso é que cinquenta anos depois a grande política do Estado brasileiro na formação profissional dos jovens e adultos reedita o PIPMO, com as mesmas características, mas com um volume muito maior de recursos - Programa Nacional de acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) e Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO).
Essas políticas, sem a base do ensino médio, constituem-se num castelo em cima de areia. A meta até 2014 anunciada pelo Ministério da Educação de 8 milhões de vagas, a maioria no Sistema S, Especialmente SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), como o aporte de dinheiro púbico do BNDES de 1,5 bilhões de reais, pavimentara este castelo, mas continuaremos negando a efetiva cidadania política, econômica, social e cultural à geração presente e futura de nossa juventude. Na expressão de Florestan Fernandes, continuaremos ser um Brasil gigante com pés de barro. Vale dizer, um gigante econômico com uma democracia efetiva frágil e formal e uma sociedade absurdamente desigual
A mudança não virá da classe dominante e seus representantes no âmbito político, jurídico, e religioso. Isto somente poderá mudar pela organização dos movimentos sociais, sindicatos e intelectuais, forças políticas e culturais que efetivamente lutam pelos direitos dos trabalhadores do setor público e privado e forcem as mudanças estruturais que mantem uma sociedade, que, como analisa Francisco de Oliveira, produz a miséria e se alimenta delasociedade desigualitária sem remissão E essa mudança só se dará quando os autodenominados “investidores sociais” acima referidos pagarem impostos sem a troca da tutela do Estado com benefícios fiscais e haja imposto de renda progressivo. Aí poderemos ter fundos públicos para uma escola básica que inclua o ensino médio público, laico, gratuito e universal, no padrão dos 1,2% da rede federal atual. Certamente será uma poderosa mediação para a cidadania política, econômica e cultural.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Ensino Médio e Técnico profissional: disputa de concepções e precariedade. São Paulo, Jornal Le Monde Diplomatique Brasl. Ano 6, nº 68, março de 2013, p.28-29


[1]  Doutor em Educação – História e sociedade (PUC/SP), professor titular em Economia Política da Educação na Universidade Federal Fluminense e, atualmente, professor no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
[2] . Ver. Saviani, Dermeval. As reformas educacionais no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 13.10.2012, Videoconferência

Um comentário:

  1. Ficamos sem fôlego, até mesmo para comentar, frente a tamanha denúncia. É preciso nos qualificarmos criticamente, politicamente, para enfrentar efetivamente estas questões e tanto descaso com a nossa educação brasileira.

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