Gaudêncio Frigotto[1]
Um dos contrastes que se reitera historicamente em nossa sociedade é a absurda
concentração de renda e a propriedade na mão de uma minoria e, como
consequência, uma grande massa de pobres ou miseráveis.
Como a escola e os processos formativos não são apêndices da sociedade,
mas parte constituída e constituinte da mesma, a desigualdade social se reflete
na desigualdade educacional. O estigma colonizador e escravocrata da classe dominante
brasileira produziu uma burguesia que não completou, em termos clássicos, a
revolução burguesa e, como tal, não é nacionalista, mas associada ao grande
capital.
Trata-se de uma classe dominante que desde o império tem um discurso retórico
que apresenta a educação como uma prioridade fundamental, uma espécie de galinha dos ovos de ouro para resolver todas
as mazelas da sociedade. Almeida de Oliveira, em discurso no Parlamento em 18
de setembro de 1882, afirmava: na instrução pública está o segredo da
multiplicação dos pães, e o ensino restitui cento por cento o que com ele se
gasta[2].
Um discurso que hoje se materializa no slogan todos pela educação, mas
que na realidade legitima propostas educacionais de interesse privado dos grupos
industria, do agro negócio e dos serviços, especialmente bancos e grande
imprensa privada. Isto se efetiva pela adoção, por
prefeituras e estados, de institutos privados para gerir os sistemas de ensino
no conteúdo e no método e nos valores mercantis.
O passo mais ousado deste processo foi
lançado no dia 31 de Janeiro de 2013 com o nome sugestivo de Conviva Educação, um sistema virtual “gratuito”,
desenvolvido por “investidores sociais”
para apoiar a gestão das secretarias municipais de educação de todo o Brasil.
Quem são estes protagonistas? Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM Fundação Itaú Social, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Victor Civita, Instituto
Gerdau,
Instituto Natura, Instituto Razão Social, Itaú BBA e o Movimento Todos Pela Educação.
A barriga de aluguel para a gestão e da divulgação é União Nacional dos
Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), com o apoio do Conselho Nacional de
Secretários da Educação (CONSED).
Mas desde o Império são exatamente os representantes laicos e religiosos
desses grupos privados que no judiciário, no parlamento e na burocracia do
Estado, sustentados pelo monopólio da grande imprensa, que barraram ou
desfiguram as propostas que emanam do debate da sociedade e que buscam afirmar
o sentido republicano do direito à educação básica, pública, gratuita,
universal e laica. Há mais de dois anos o Plano Educação, amplamente negociado
e debatido na sociedade, está sendo protelado e desfigurado por estas forças
privadas
Dermeval Saviani, em videoconferência, explicita de forma sucinta a
negação histórica ao efetivo direito de educação básica pública de qualidade
com a equação: Filantropia + protelação + Fragmentação + improvisação = precarização geral do ensino no país.
Para elucidar o resultado deste
descaminho histórico nos fixamos no ensino médio e a formação técnica e profissional.
Trata-se do duplo passaporte à cidadania efetiva, no plano político, social e
econômico mediante o acesso qualificado ao mundo da produção.
Cidadania política significa ter
os instrumentos de leitura da realidade social que permitam aos jovens e adultos
reconhecerem os seus direitos básicos, sociais e subjetivos e a capacidade de
organização para poder fruí-los. No plano da formação profissional, a cidadania
supõe a não separação desta com a educação básica. Trata-se de superar a
dualidade estrutural que separa a formação geral da específica, a formação
técnica da política, lógica dominante no Brasil, da colônia aos dias atuais. Uma
concepção que naturaliza a desigualdade social postulando uma formação geral
para os filhos da classe dominante e de adestramento técnico profissional para
os filhos da classe trabalhadora.
A retórica reiterada da
importância da educação de todos pela
educação o convida educação
mostra-se cínica diante dos dados do Censo do INEP/MEC de 2011. O Brasil tem hoje
8. 357.675 de alunos matriculados no
ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9%, no âmbito estadual,
1,1% municipal e 11,8% no ensino privado. Pode-se afirmar que no âmbito público
apenas os 1,2% alunos em escolas federais e algumas experiências estaduais,
como a Escola Liberato no Rio Grande o Sul, têm padrões de qualidade
internacional, com professores de tempo integral, carreira digna, tempo de
pesquisa e orientação, laboratórios, biblioteca, espaço para esporte e arte
etc., cujo custo econômico médio é de 4 mil dólares, aproximadamente 8 mil
reais.
Os 85% de jovens que estão nas
escolas estaduais mais de um terço o fazem à noite, com professores trabalhando
em três turnos e em escolas diferentes e com salários vexatórios. O custo médio
é de aproximadamente mil dólares ano, um quarto do custo federal. Uma
mensalidade numa escola privada de elite corresponde ao que a sociedade Brasileira
está disposta gastar com a maioria absoluta dos jovens que estão no ensino
médio ao longo de todo um ano.
Mas o alarmante é o que revela a última Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens
brasileiros. São 18 milhões de jovens entre 15 e 24 anos estão fora da escola e
1.8 milhão, em idade de estar no ensino médio, não estão frequentando. Na faixa
de entrar na universidade, 18 a
24 anos, 16,5 milhões de jovens, ou seja 69,1% não estudam. Pode-se concluir que o Brasil não tem de
verdade ensino médio.
A metáfora do apagão educacional
que aparece no vozerio de empresários e seus representantes intelectuais e políticos,
para reclamar a falta de pessoal qualificado esconde quem produz: a mentalidade
colonizadora e escravocrata da classe dominante que constituem. Como o quadro de ensino médio acima
apresentado a formação profissional em nível superior ou pós médio só pode ser
pífia.
Os dados do PNAD mostram que apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos
entram no curso superior. É claro que vão faltar, especialmente em algumas
áreas, de profissionais qualificados. Como nos últimos 50 anos avançamos de
forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o
ensino médio na idade adequada e a maioria só atinge o ensino fundamental, as
políticas de formação profissional para grande massa de jovens e adultos estão
na lógica da improvisação, precarização e adestramento.
Isso fica evidenciado no seguinte dado histórico: em 1963, no curto
governo João Goulart face à carência de trabalhadores qualificados a aquele
ciclo de desenvolvimento criou-se o Programa Intensivo de Preparação de
Mão-de-Obra (PPMO). Um programa transitório e de curta duração. Veio o golpe
civil militar e este programa durou 19 anos.
O que é espantoso é que cinquenta anos depois a grande política do Estado
brasileiro na formação profissional dos jovens e adultos reedita o PIPMO, com
as mesmas características, mas com um volume muito maior de recursos - Programa Nacional de acesso ao
Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) e Programa Nacional de Educação
do Campo (PRONACAMPO).
Essas políticas, sem a base do ensino médio, constituem-se num castelo em
cima de areia. A meta até 2014 anunciada pelo Ministério da Educação de 8
milhões de vagas, a maioria no Sistema S, Especialmente SENAI (Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial), como o aporte de dinheiro púbico do BNDES de 1,5
bilhões de reais, pavimentara este castelo, mas continuaremos negando a efetiva
cidadania política, econômica, social e cultural à geração presente e futura de
nossa juventude. Na expressão de Florestan Fernandes, continuaremos ser um Brasil gigante com pés de barro. Vale dizer,
um gigante econômico com uma democracia efetiva frágil e formal e uma sociedade
absurdamente desigual
A mudança não virá da classe dominante e seus representantes no âmbito
político, jurídico, e religioso. Isto somente poderá mudar pela organização dos
movimentos sociais, sindicatos e intelectuais, forças políticas e culturais que
efetivamente lutam pelos direitos dos trabalhadores do setor público e privado
e forcem as mudanças estruturais que mantem uma sociedade, que, como analisa
Francisco de Oliveira, produz a miséria e
se alimenta dela – sociedade
desigualitária sem remissão E essa mudança só se dará quando os
autodenominados “investidores sociais” acima referidos pagarem impostos sem a
troca da tutela do Estado com benefícios fiscais e haja imposto de renda
progressivo. Aí poderemos ter fundos públicos para uma escola básica que inclua
o ensino médio público, laico, gratuito e universal, no padrão dos 1,2% da rede
federal atual. Certamente será uma poderosa mediação para a cidadania política,
econômica e cultural.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Ensino Médio
e Técnico profissional: disputa de concepções e precariedade. São Paulo, Jornal
Le Monde Diplomatique Brasl. Ano 6, nº 68, março de 2013, p.28-29
[1] Doutor em Educação – História e sociedade
(PUC/SP), professor titular em Economia Política da Educação na Universidade
Federal Fluminense e, atualmente, professor no Programa de Pós Graduação em
Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro.
[2] .
Ver. Saviani, Dermeval. As reformas educacionais no Brasil. Rio de Janeiro,
Fundação Oswaldo Cruz, 13.10.2012, Videoconferência
Ficamos sem fôlego, até mesmo para comentar, frente a tamanha denúncia. É preciso nos qualificarmos criticamente, politicamente, para enfrentar efetivamente estas questões e tanto descaso com a nossa educação brasileira.
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